Jorge Valpaços é professor de história, especializado em cultura antiga e medieval e cultura afro-brasileira e indígena. Ele também é escritor e game designer de RPG’s. Entre os principais RPG’s que escreveu há Déloyal, Pesadelos Terríveis e Arquivos Paranormais.
- Jorge, eu te acompanho nas redes sociais e vejo que você gosta bastante de mestrar e interagir com as suas mesas. Como você se sente ao ver as pessoas jogando seu jogos?
Olá Felipe, tudo bom? Espero que sim! Primeiramente muito obrigado pela oportunidade dessa conversa! Hum, sobre sua pergunta, eu curto muuuuuuito jogar RPG. Jogar, não apenas escrever, sabe? Acontece que pra mim há uma relação dialética entre jogar e criar para RPG, e é essa relação que me impulsiona. E, narrando ou jogando em encontros de jogos ou feiras culturais, quando apresento o RPG para iniciantes ou jogo com amigos, sinto algo muito bom, algo que me alimenta. O RPG é um modo de jogar (ou tipo de jogo) que me permite criar, expressar, me emocionar e criar histórias com pessoas que acabei de conhecer. Cá pra nós, não há algo mágico nisso?
Quando vejo pessoas jogando meus RPGs sempre me emociono. Sei que já tem alguns anos que crio jogos, mas cada vez que vou a um evento e vejo alguém jogando um jogo meu, cada vez que recebo um feedback pelas páginas do Lampião, cada vez que nos marcam ou comentam sobre os livros que escrevi eu me sinto um pouco ali, sendo tocado por outras pessoas. O RPG é um jogo lacunar, um tipo de experiência que só se completa no ato de jogar, e isso cria uma relação de afeto e entrega bem específica. De alguma forma, quando vejo meus jogos em ação, sinto ali a minha mão, a minha “magia” acontecendo. E ISSO É FANTÁSTICO! E é justamente por isso que eu tento jogar e dar visibilidade os jogos dos criadores brasileiros de RPG, já que também faço parte dessa comunidade incrível que constrói possibilidades de criar histórias jogando!
- Quando foi que você começou a escrever seus primeiros RPG? Algo te influenciou a começar a escrever?
Todo jogador de RPG tem seus esboços, suas criações, seus jogos com amigos. Então acho que comecei a criar quando comecei a jogar com mais frequência RPG. É importante pontuar isso para não rolar aquele tipo de papo elitista sobre a criação de jogos. Claro que quando a gente faz algo e joga com amigos possui outras preocupações, e, com os estudos, você adquire mais conhecimento e aprimora sua técnica. Mas o aspecto amador (conceito apropriado positivamente aqui) de “nossa, isso aqui daria um jogo!”, “vou tentar algo” ou “eu vou mexer nisso aqui” é apaixonante, e acho que isso essa entrega/paixão é algo importante para criar.
Mas as coisas começaram a ficar “sérias” no Lampião. Sem o apoio de Jefferson, Rafão e Diego, acho que as cosias seriam bem diferentes. O primeiro título pelo Lampião foi Sarjeta, Sereno, Solidão e ali já dava pra ver um tanto sobre o que define meu estilo de criar. Sabe, a gente sempre deposita no que cria as experiências que temos, e nos meus jogos dá pra notar as coisas que me afetam, as marcas na minha existência e mensagens que quero passar adiante. Sim, outros jogarão, mas há um contato, uma partilha, e sempre há algo pessoal em cada projeto. Em Sarjeta, Sereno, Solidão eu trato da sobrevivência de pessoas em condição de rua, já Déloyal é um jogo sobre a luta contra um regime opressor, em Pesadelos Terríveis jogamos com traumas e medos, Asas da Vizinhança lida com os pequenos dramas humanos que passam desapercebidos aos nossos olhos, Encantos fala da magia da vida da amizade adolescente, etc. Há sempre algo que mexe comigo quando escrevo e os meus RPGs são como a transposição de um pouco da minha experiência de vida para criar histórias através de jogos.
Então, se há algo que me influenciou para começar a escrever, e que ainda me influencia, é fruto de uma das afetações das minhas vivências, das coisas que amo, que me incomodam, que odeio, que me emocionam. E acho que enquanto me permitir ser aberto a sentir e me expressar de formas diferentes, continuarei criando jogos. Digo isso porque os jogos narrativos pra mim são como uma troca. Enquanto me expresso criando, vou aprendendo, vou deixando parte de mim ser parte do entorno e me reconfiguro nessa troca também. Criar jogos é um processo, um caminho, uma cura, uma forma de me expressar. E hoje, é uma forma de me manter vivo.
- Você gosta de criar cenários diferentes para cada um de seus jogos. E percebi que gosta de mudar de tema em cada um de seus jogos. Você tem algum padrão para escrever/criar seus jogos?
Acho que não tenho um padrão para criar jogos. Ok, sigo alguns métodos para organizar os processos e técnicas em torno da escrita, testes, validações e entregas. Mas sobre os temas e cenários, eles vão ao encontro de perguntas que faço, de questionamentos que estou passando, de sonhos e afetos, de memórias que acesso, incômodos, novas ideias que quero tentar. Mas tem uma coisa que costumo tratar em todos os jogos: o próprio RPG!
Não que isso seja um padrão, mas pensar o RPG é um tema que atravessa meus jogos. A ficha de personagem, o que é um teste, qual a relação que temos com o manual do jogo, quais os comportamentos esperados do narrador, a relação entre personagens e jogadores, a criação de cenários, a segurança nas mesas. Eu tento refletir sobre isso dentro dos meus RPGs. Dá pra encontrar estes e outros questionamentos nos jogos que já escrevi, e ultimamente isso está sendo cada vez mais importante pra mim. Em resumo, o próprio “ato de jogar RPG” é um tema recorrente, algo que faz com que meus jogos sejam um espaço para estudo e prática da própria cultura lúdica que se constrói quando jogamos.
- Para os novos autores de RPG, que dicas você daria para quem está começando e criando jogos e universos? Onde podem ir buscar inspiração?
Esta é uma ótima pergunta! Uma dica importante é não segurar a sua ideia apenas pra si. Apresente, jogue, divida, experimente. Fale sobre e, sobretudo, ouça. É muito importante a troca e muitas vezes achamos que estamos abafando sem ao menos termos uma crítica. E olha, receber um retorno no início de um projeto pode ajudar todo o seu desenvolvimento.
A segunda dica pode parecer careta, mas é fundamental: estude. Não vou enumerar livros teóricos sobre jogos e design, até porque essa entrevista não se propõe a isso, mas acho relevante que quem se propõe a criar se aproprie dessa linguagem. Então, ler sobre jogos de RPG, sobre escrita criativa, sobre a construção de universos, é muito importante. E jogue, jogue bastante. Tente dedicar seu tempo para “decodificar jogos”, compreendendo quais são seus mecanismos de recompensa, para que servem suas principais mecânicas, etc. Analise os pontos de conflito em um cenário e até mesmo como os manuais são redigidos e organizados. Quando falo de estudo não estou me referindo apenas ao campo acadêmico de jogos, mas aos manuais publicados e ao jeito de jogar. Estudar e ter esse estudo como algo recorrente vai fazer com que você adquira repertório e que consiga mobilizá-lo para criar seus próprios jogos.
Uma terceira e última dica é… dialogue! A comunidade de criadores de jogos está em expansão e há pessoas incríveis a seguir e acompanhar. Eu admiro muita gente bacana como o Fábio Emílio Costa (que contribui aqui no Dungeon Geek), a Nina Bichara, a Franz Andrade, a Elisa Guimarães, o Diego Barreto Azevedo, o Raphael Lima, o Luiz Claudio Gonçalves… Nossa, tanta gente! E olha que não falei nem a metade! Quando a gente começa a entrar em contato com essa galera, aprende muito e nestas trocas cria redes de contato e apoio. Penso que fortalecendo um grupo de criadores independentes que visam um apoio mútuo teremos mais força e visibilidade. Eu realmente acredito nisso e, caso possa ajudar você, isso mesmo, você que está lendo e que tem alguma ideia, pode contar comigo!
- Para a elaboração da mecânica do jogo, você gosta de usar algo já estabelecido ou cria algo específico para o jogo?
Essa é uma boa pergunta também, e pode se relacionar com outras que já foram feitas. A gente nunca cria nada do zero. Então, de alguma forma, dialogamos com influências, mesmo que muitas vezes para tensioná-las, criticá-las, negá-las. Digo isso porque, mesmo quando crio algo específico para um jogo, reviro meu baú de referências para saber quais as melhores soluções que posso ter para um projeto. É por isso que um bom repertório é algo bem importante quando precisamos desenvolver projetos.
Eu costumo criar mecânicas específicas para o conceito do jogo que estou criando, ainda que haja pontos em comum com outros RPGs. Por exemplo, o Sistema L’Aventure, que impulsiona Encantos, Ceifadores, Déloyal e Arquivos Paranormais, possui alguns pontos em comum, como a existência de minúcias (objetivos discretos durante a aventura que geram consequências no final das mesmas). Mas como as coisas funcionam para que esses objetivos sejam criados e superados, é algo que cada proposta de jogo, cada experiência, traduz. Então, eu gosto de pensar em formas específicas que um jogo tem para lidar com uma determinada proposta, muitas vezes utilizando referências para encontrar a melhor solução.
- Pegando um pouco do professor Valpaços, você acha que o RPG pode ser utilizado como uma ferramenta pedagógica? Quais vantagens pode ter no aprendizado em alunos?
Sem dúvidas! O RPG é um tipo de jogo que tem um grande potencial para a educação. Não é em vão que as pesquisas acadêmicas sejam tão comuns na área, chegando a haver uma edição especial dedicada no International Journal of Role-Playing sobre o tema (saiba mais aqui http://ijrp.subcultures.nl/?page_id=509). Mas é claro que para a implementação de um projeto pedagógico em torno de jogos é preciso um tanto de cautela, caso contrário o jogo é apenas instrumentalizado. Sabe quando um professor apenas “passa filme” nas aulas e não há um trabalho pedagógico em torno da atividade? Então, é preciso ter o mesmo critério para usar jogos em contextos educativos, caso contrário o educador pode apenas “preencher o tempo” ou “recortar parte do jogo como um mero instrumento para ensinar algo”. Em outros termos, é importante conhecer RPGs para fazer as relações entre a mediação educativa e o potencial lúdico que a linguagem do jogo potencializa.
Quanto às vantagens que o RPG pode proporcionar, destaco sobretudo o caráter ativo que os jogadores-alunos assumem. Quando se joga, estamos engajados na atividade e criamos algo por meio de nossa criatividade e escolhas. A simples mudança da postura passiva em relação ao ensino já é algo valioso para a educação. Além disso, destaco o pensamento estratégico para a solução de problemas, a cooperação entre os participantes e o próprio ato de criação que pode ser explorado de diferentes formas. Mapas, diários, gráficos, manuais, tudo aquilo que quando jogamos vamos criando pode ser utilizado como estratégia de aprendizagem e avaliação. E claro, criar jogos também pode ser algo interessante em contextos educativos. Isso mesmo. Para além de levar um RPG para as salas, que tal considerar a criação de um jogo com os alunos como uma atividade pedagógica?
Tudo o que foi apresentado instiga a curiosidade e faz com que os alunos se apropriem não apenas do conteúdo, mas do “jogo de aprender”. Pense comigo, você prefere pesquisar sobre como era a economia do Império do Mali para criar um jogo ou jogar uma aventura baseada sobre este contexto histórico, ou apenas decorar informações para uma prova? Neste sentido, o jogo de RPG em uma proposta pedagógica confere sentido e fruição em um espaço normalmente “chato” e vez por outra até hostil à criatividade dos alunos.
- É comum as pessoas desgostarem ou estranharem um RPG que foi feito para ensinar?
Solenemente respondo que… Não sei! XD Eu não conheço muitos RPGs feitos especificamente para ensinar mas conheço alguns jogos pedagógicos que são considerados chatos para os alunos. Por quê? Porque não são bons jogos! Mas avaliar apenas o jogo e os alunos exime a mediação que o educador faz, então as coisas ficam um pouco mais complexas, entende? Não dá para apenas desgostar ou estranhar sem pensar que a educação é um processo social, e este processo se dá em uma relação dialética.
Hum… pensei noutro ponto. “Pessoas desgostarem ou estranharem” me parece um pouco amplo. É claro que pais e até mesmo alunos podem achar estranho quando o professor leva jogos para o colégio. Mas se ele “abrir o jogo” e apresentar os objetivos que tem para a atividade, explicando com cautela o porquê o jogo foi escolhido e para quê ele se encontra no currículo, este estranhamento (que é bom, acredite!) vai se dissolvendo. E veja, se não houvesse estranhamento não teríamos descobertas, não é mesmo?
- Qual RPG você acredita ser o melhor para começar a jogar RPG, para alguém que nunca jogou ou não entende sobre o assunto?
Eita, pergunta bem difícil! Eu poderia falar algum jogo do Lampião Game Studio, algum jogo conhecido mundialmente ou até mesmo um sucesso de vendas aqui no Brasil, mas “pra quem estou falando” me faz pensar muito antes de responder. E quando a gente começa a pensar em tantas variáveis em torno da pergunta fica um pouco complexa para ser respondida.
Vivemos em um país periférico e muitos títulos bem conhecidos são inacessíveis a muita gente. Vários jogos estão disponíveis apenas em inglês e a barreira linguística em um jogo que tem o manual como um elemento central para ser jogado pesa muito. Por outro lado, há títulos muito bons e gratuitos aqui no Brasil, e isso é incrível! Contudo, estes jogos por vezes são considerados inferiores, o que cria uma clivagem entre o “jogador estabelecido” e os “jogadores menores”, e não considero correto ignorar certos mecanismos de violência simbólica que existem em torno da cultura de jogos. Logo, paralelo à resposta da pergunta, o trabalho com comunidade, com a organização de eventos, acessibilidade de RPGs em vários níveis e pautas positivas e propositivas para a formação de novos jogadores e práticas seguras dentro e fora das mesas de jogo são ações que ajudam a responder a pergunta.
Contudo, para ser mais objetivo, acho que um bom caminho para sugerir um RPG seja buscar o tipo de história que o jogador curte. Eu não vou recomendar um jogo de aventura pulp como Déloyal para quem busca fantasia medieval tradicional. Neste caso recomendaria Old Dragon, por exemplo. Estes dois jogos têm seus manuais digitais gratuitos e há uma centena de outros títulos com gêneros bem interessantes a novos jogadores. O que quero dizer é que não há uma recomendação simples e objetiva para um RPG a um iniciante, sendo necessário entender a demanda e o onde se encontra quem busca o jogo. É como recomendar um filme ou uma música a alguém. Vale conhecer um pouco do que a pessoa curte, o que deseja experimentar e o que não acha tão bacana. Com isso fica muito mais fácil dar a dica.
- Você sente que o cenário nacional de RPGs possui espaço para crescer?
Sem dúvidas! É notável a expansão do público jogador, das iniciativas de publicação e criação, dos encontros e eventos de jogos. Considero o momento muito bom para o RPG, e fazer parte disto é muito gratificante! Mas quero destacar para a criação nacional de RPG, que é onde me posiciono. Considero que, sobretudo na cena independente, não devemos nos descolar da realidade, da conjuntura na qual vivemos. Estamos em um cenário economicamente desfavorável com inúmeros desafios aos autores. É por isso que penso que o fomento de novos públicos fora das bolhas e centros tradicionais e o apoio mútuo a criadores seja uma das chaves não apenas para o crescimento, mas para a consolidação do cenário autoral de RPGs no Brasil.
- Qual é seu RPG favorito?
Espero que seja o próximo! Essa é uma resposta otimista, pois gosto de olhar adiante, rumando ao desconhecido! Então fico sensível a conhecer e jogar novos jogos, desejando ser surpreendido com novos universos, mecânicas e experiências. Estar aberto ao novo, com uma alma brincante é algo que desejo manter sempre vivo em mim, e tanto refletir isso em meus jogos, e por isso o próximo também se relaciona ao que estou escrevendo neste momento. Ué, a gente tem de curtir o que a gente faz, não é mesmo? Mas suspeito que, de todos os RPGs que já joguei, acho que o há um empate entre Fragmentos, Este Corpo Mortal e Scroll.
Jorge, muito obrigado pela atenção e dedicação dada a esta entrevista!
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