Livros de RPG são, geralmente, bastante descritivos nas possibilidades de ações. Contudo, alguns jogadores e mestres possuem o hábito de se manter nos limites restritos das regras contidas nos livros, permitindo poucas vezes fugir do que está ali descrito. Hoje, eu gostaria de propor a você, leitor, uma fuga deste hábito. Sair do óbvio, fugir da descrição-base de regras. Vamos usá-las menos como regras, e mais como dicas uma base do que fazer. Um ponto de partida.
No mundo real, duas ações podem ter resultados completamente diferentes, conforme as variáveis de uma determinada situação mudam. Disparar uma arma de fogo parece uma ação simples, bastando apenas puxar o gatilho, mas existem vários fatores que podem influenciar o resultado: a arma pode estar suja, danificada, possuir um defeito de fabricação. O vento pode alterar a trajetória do disparo, o alvo pode se mover… enfim. E eu gostaria de questionar: por que o mesmo não acontece com magias?
Vamos usar a quinta edição de Dungeons & Dragons como exemplo. Magos de primeiro nível têm acesso ao truque (cantrip) “Raio de Gelo” (Ray of Frost). A descrição da magia diz o seguinte:
“Um feixe gélido de luz branca-azulada é disparado até uma criatura dentro do alcance. Faça um ataque mágico à distância contra o alvo. Caso acerte, a criatura recebe 1d8 de dano (frio) e seu movimento é reduzido em 3 metros até o início do seu próximo turno.”
Bastante objetivo. A descrição deixa bem claro que se trata de uma magia de dano com efeito adicional de controle (diminuição do movimento da criatura atingida). Não existe dúvida, variação ou nuance na descrição do efeito: se 100 magos conjurarem Raio de Gelo, as 100 conjurações serão exatamente iguais. Com exceção, claro, do único elemento aleatório: o 1d8 de dano. Mas fica a pergunta: seriam todos os 100 magos iguais? Com exatamente o mesmo conhecimento, nas mesmas condições? Será que a magia é algo tão rotineiro assim, sendo sempre igual?
É perfeitamente aceitável argumentar que as magias possuem “receitas”, e que seguir a mesma receita resulta no mesmo efeito. Entretanto, uma receita de “Bolo de Chocolate” pode ser exatamente a mesma, mas peça que 100 cozinheiros diferentes a sigam, e eu duvido que você receberia 100 bolos perfeitamente identicos. Ou bolos identicos que causariam 1d8 de dano por açúcar.
“Ok, Beowulf. Tá na hora de chegar ao ponto…”
Só porque o livro diz que as magias se resolvem assim, não quer dizer que elas precisam ser sempre iguais. Usando o Raio de Gelo como exemplo, e se o mago que está conjurando o truque estivesse em uma caverna vulcânica, ou na encosta de uma montanha exposto a -30c? O calor/frio poderiam diminuir/aumentar o efeito causado pela magia? Ou se o alvo do Raio de Gelo fosse uma criatura feita de água? Ou Fogo?
Livros de regras de RPGs tem um problema similar a jogos eletrônicos: eles não conseguem prever todas as variáveis de uma situação, e exibir/propor todos os resultados. Cabe ao mestre considerar todas estas variáveis e descrever um resultado que julgue lógico e correto – mesmo que, ou melhor, especialmente caso o resultado ou a situação fujam do que está previsto ou descrito nas regras.
E se o Mago quiser resfriar sua cerveja usando uma versão controlada, mais fraca de Raio de Gelo? E se outros clientes da taverna testemunharem o feito, e pedirem para ter suas bebidas geladas também? Existem várias situações e eventos que podem surgir da permissão do uso criativo de magias. Usar Bola de Fogo para abrir passagem em uma caverna congelada. Conjurar Relâmpago em um lago para eletrocutar inimigos aquáticos… é bastante difícil fugir do que está descrito no livro, mas com bastante cuidado e imaginação, a conjuração criativa pode melhorar a experiência de jogo permitindo soluções diferentes para problemas.
Claro que abusos podem ser cometidos. Um jogador pode propor um uso de conjuração criativa que fuja demais da lógica ou do que se espera de um efeito mágico. Cabe, como sempre, bom senso para avaliar se uma situação permite tal uso, ou a probabilidade de que aquilo aconteça. Como sempre, espera-se um certo nível de compreensão de todos, e a palavra final deve ser do mestre – levando em consideração os argumentos dos jogadores, e em caso de dúvida siga o que é proposto no livro.
A conjuração criativa não deve também ser algo forçado. Caso o jogador não queira ou não esteja disposto a pensar em cada possibilidade minunciosa, deixe que apenas o efeito básico seja utilizado. Mas não tenha medo de propor usos. As vezes o jogador – especialmente se for iniciante, ou se não estiver acostumado com este estilo de jogo – tem receio de propor efeitos e de ter sua ideia ridicularizada, o que jamais deve acontecer – atenção com o Contrato Social de seu grupo e aventura/campanha.
Tudo o que gostaria de propôr é que mestres e jogadores devem manter uma mente aberta. Não ter medo de alterar ou fugir do que está escrito nos livros de regras, e deixar que a criatividade de todos guie a experiência de jogo, para que o RPG seja conduzido por ideias, e não por palavras escritas fixas e imutáveis. O RPG é um jogo de interpretação… então, interprete!
Caso você queira ouvir mais sobre Conjuração Criativa, eu pessoalmente recomendo o episódio 117 do podcast Gaming and BS (em inglês), onde os anfitriões discutem suas experiências pessoais com esse tipo de interpretação. Você pode encontrar o podcast nas principais plataformas tanto em iOS ou Android, ou ouvir diretamente no site do programa clicando aqui.