Qualidade de Narrativas para Jogos — Um Guia do Básico (Parte 1)

Hoje em dia os jogos estão cada vez mais sendo complementados com histórias que envolvem o jogador e o faz ansiar por mais. É certo que jogos que possuem boas narrativas criam um ambiente que facilita uma maior retenção a longo prazo, que é um elemento importante para jogos (em especial, mobile e em modelo Freemium). Dado isso, é necessário que implementemos ao nosso trabalho como Game Designers a prática de começar a analisar a qualidade da mesma, seja ela feita por nós ou por outro colega de equipe. Este artigo se faz um guia para você — escritor ou não, de jogos ou não — dar
mais atenção à narrativa, afinar o seu olhar crítico para o enredo e história que permeiam os jogos mobile e identificar possíveis pontos de melhoria que contribuirão (e muito!) para experiência do seu jogador.
 
Uma Boa Narrativa Possui: Muito conteúdo, nem tanto texto!
Ao se trabalhar com jogos mobile, temos que ter em mente que há espaço limitado para diversos tipos de features que nosso jogo pode vir a ter. A narrativa é um deles e, por isso, deve-se ter uma atenção especial dedicada à quantidade de texto que você envolve na sua gameplay.
 
Game writing is the “haiku of storytelling,” especially for mobile, and writers should concentrate on what they can do with a limited amount of text. – Christy Marx
 
Se o seu jogo não segue o estilo ou público alvo de visual novels , ou qualquer outro gênero cuja a narrativa é dada como principal mecânica, é muito provável que uma quantidade exagerada de texto em seu jogo será ignorada (ou até ser considerada um ponto negativo por alguns jogadores). Por exemplo, imagine que você está jogando um First Person Shooter competitivo e antes de a partida começar você é obrigado a passar por 20 balões de diálogo que carregam o texto gradativamente. O grande público de um FPS está frequentemente procurando ação imediata e por isso, texto em demasia não é algo que vai fazê-los ficar no seu jogo. O primeiro passo é sempre analisar o quão receptivo será o seu público para acompanhar a história de seu jogo. Seria um público que leria mais? Que ignoraria balões de diálogo, mas prestaria atenção em cutscenes? Que ficaria mais confortável ao não ser obrigado a acompanhar a história? Através dessas informações, é uma boa prática pensar em qual seria a melhor maneira de passar essa história para seus jogadores para que ela não seja prejudicada posteriormente.
 
My point is that you can—and should—use gameplay to tell your story. The “show, don’t tell” rule for games is “gameplay, not text.” So the better you understand the game mechanics, the better you can use them to tell your story. – Anna Megill
 
Para tornar a história de seu jogo atrativa e engajante é preciso encontrar o equilíbrio entre
a apresentação da história e a gameplay. Com esse propósito existem vários exemplos de
recursos narrativos que podem mesclar a interação do seu enredo com outras mecânicas
do jogo, utilizando pouco texto e deixando o jogo mais fluído e amarrado à sua história
como um todo. Ao invés de concentrar muito texto num só lugar, divida-o entre
comunicar-se com personagens, possíveis pontos de interação do jogador com a mecânica
principal, imagens, efeitos sonoros e pequenos drops de texto que podem liberar
informações úteis da história, mas que não prendem a gameplay.
 
Most of my favorite narrative-driven games contain very little dialog in them at all – Ico, Shadow of the Colossus, Flashback, Out of this World – but even these titles are “written” in the sense that they have a clear set of emotional shifts, tonal changes, and meaningful moment-to-moment events that compound into emotional pay-offs. When writers and designers band together and discuss a game’s story, characters, dramatic set-pieces, and settings in parallel with ideas about the game mechanics and levels, the team will begin to find exciting and creative ways of conjoining the two disciplines into a more unified experience. – Darby McDevitt
 
Quando a gameplay e o enredo se tornam uma experiência unificada, esse equilíbrio é
conseguido e uma relação de quantidade de texto vai se fazendo menos necessária onde a
narrativa começa a se dar em conjunto com os demais elementos de seu jogo.
 
TL;DR:
  • Diálogos que prendem muito a gameplay devem ser minimizados, se o jogo não tiver a narrativa como parte do core loop.
  • História deve estar adequada ao perfil do público do jogo.
  • Trabalhando com mobile, é importante o texto evitar rodeios. O espaço é limitado.
  • Outros recursos narrativos que não sejam só caixas de texto devem ser priorizados. História deve ser transmitida de formas diferentes no jogo, que não prendam a gameplay.
  • Cada vez menos texto é necessário se a história também for contada através da gameplay em si.
Um Incrível Começo , um Interessante Meio e Um Grande Final!
 
Uma narrativa necessita de coesão. É preciso pensar que, embora essa ordem não precise
estar muito clara para o jogador, as coisas sempre tem um início em algum ponto, se
desenvolvem e em algum momento elas irão terminar. Claro que, isso não deve ser
levado ao pé da letra – afinal, seria uma grande limitação. Quantas histórias não começam
por flashbacks? Enredos que começam do fim e depois voltam para contar o que originou
aquela situação? Histórias sem um final claro, que deixam um cliffhanger que jamais será
respondido? Existem várias interpretações possíveis para o “começo, meio e fim”, portanto,
lembre-se que é importante, mas não o use como qualquer tipo de limitação. O início do
jogo não precisa ser o começo da história e onde acabar a história não precisa ser o final
do jogo, entende? Mas é importante que você, como criador da sua história, saiba
identificar e definir esses parâmetros para utilizá-los posteriormente com a função de despertar determinados sentimentos no seu público.
When writing linear stories, we can learn a lot from the last couple of centuries. Aristotle tells us that stories should be a believable chain of causes and effects brought about by the main
character, and that stories should have a beginning, middle and end. McKee tells us that story is about forms, that story is about change, and that character is more important than characterization. Campbell gives us the Hero’s Journey story form, which is useful when writing stories about heros. – Ian Schreiber
 
O começo é geralmente o espaço usado para fisgar o leitor/jogador. É o começo de um
enredo que vai definir se ele vai se interessar de fato pelo que é proposto e, se a
narrativa do seu jogo for uma parte vital do core loop, esta deve ser muito bem preparada
para o seu público. Nesse ponto, é ideal que fique claro o conflito/objetivo no qual a
narrativa será embasada, a ambientação dela e personagens importantes para o enredo –
se houver. Tudo isso é melhor que seja mostrado de forma que não revele absolutamente
toda a história: um suspense sobre o que virá é capaz de manter o engajamento – com
entusiasmo – por mais alguns levels sem muito esforço.
 
In writing, as in dating and business, initial reactions matter. You don’t get a second chance, asmouthwash commercials often remind us, to make a first impression. – Jacob M. Appel
 
Já o “meio”, o desenvolvimento, é usualmente onde os eventos principais da trama
ocorrem. Ao acompanhar os elementos que a protagonizam (personagens, cenário e afins),
esses eventos podem ser cotidianos ou pequenos conflitos envoltos ao problema principal
que vão se dando – e/ou se resolvendo aos poucos – de forma a irem construindo de forma
gradativa uma tensão que levará ao final e a possível resolução do objetivo principal da
narrativa (e possivelmente da gameplay). Nessa parte também se dá o desenvolvimento
dos personagens, ao se envolverem com essas situações. O importante é focar-se em
utilizar-se bem do desenvolvimento da história como uma ferramenta adicional para incitar
o entusiasmo do jogador em descobrir como tudo terminará, levantando suspeitas e
teorias, perpetuando seu engajamento.
Quando o conflito/objetivo final se dá e pequenas coisas vão se resolvendo, temos o “final”.
O clímax da história chega e é resolvido (“resolvido” aqui pode ter inúmeras interpretações), o que encerra aquele sentimento de tensão e antecipação do leitor/jogador, deixando-o satisfeito (por ter terminado, e não necessariamente pela forma como terminou). É determinante para o final essa quebra de clímax, pois depois que isso acontece não há mais engajamento na narrativa, dado que o objetivo da história foi alcançado. Muitos jogos, por serem online ou constantemente atualizados e continuados podem não ter um final enxergável, mas o autor deve ter em mente onde o enredo terminaria e como, pois é isso que guiará a continuidade da sua história desde onde ela tem início.
 
Esses três conceitos básicos são conhecidos como o Arco da História. É uma forma que
funciona desde sempre para seu texto não ficar sem sentido e não fugir do entendimento
do seu público. Você pode também utilizá-lo de forma mais micro, em capítulos ou partes,
que também funciona bastante. Acima de tudo, ao construir sua narrativa, não esqueça
que você está fazendo um jogo e não escrevendo um livro. É mais do que recomendado
que a sua gameplay tenha um ritmo parecido e clímax no mesmo ponto que a narrativa.
Trate as duas como uma só!
 
TL;DR
  • O texto tem que ter coesão.
  • É preciso ter um início, meio e fim identificáveis (mesmo que isso só seja possível só depois de a história/gameplay terminar).
  • O início precisa ser introdutório ao objetivo/conflito principal do enredo – da história num todo ou do capítulo, ao menos.
  • É ideal que no início apresente-se os principais personagens e a ambientação da história.
  • O começo é uma das partes mais importantes de uma narrativa pra games. Deve ser interessante e instigar curiosidade do jogador.
  • O meio desenvolve a história, apresentando mais conflitos e mostrando evolução dos personagens.
  • É ideal que no final do desenvolvimento exista um clímax ou uma reviravolta, para antecipar o fim da história.
  • O final apresenta a resolução dos conflitos (ou quase isso) e corta o clímax.
 
Um Motivador/Objetivo que Complemente a Gameplay
 
Como dito no tópico anterior, toda história possui um conflito ou um objetivo pelo qual é
guiada, desde seu início até o seu final. É de certa forma fácil pensar em algo assim ao
escrever um conto, um livro, um artigo e etc, mas ao relacionar isso ao jogo exige a
preocupação de se isso se conectará com a gameplay de alguma forma. A grosso modo,
se o objetivo do meu enredo for resgatar a princesa do castelo e meu core loop for um jogo
de xadrez simples, que não possui nenhuma roupagem diferente (como se fosse o xadrez
básico dos jogos do Windows) ou ligação com a história, certamente eles não se
conectarão e o jogador não verá valor em algum dos dois. Enquanto isso, se o conflito da
minha narrativa for impedir meus pais de vender nossa casa e, a cada fase que ganho
recebo um feedback e um móvel novo para reformá-la convencendo-os do contrário,
teremos grande valor em ambos lados.
 
The general problem developers face is that game mechanics are about the same events
happening in different ways, while stories are about different events happening. – Alexis Kennedy
 
A narrativa é uma sucessão de eventos em direção a resolução do conflito final: assim
deve ser a progressão do enredo do seu jogo, enquanto uma mesma mecânica só será
reinventada várias e várias vezes através das fases. Quando o conflito da narrativa e o objetivo da gameplay se complementam, eles passam a coexistir (é muito fácil arrancar a
narrativa de um jogo, mesmo do core-loop, se seus propósitos forem diferentes). Veja bem,
eu posso escrever uma história sobre salvar a princesa do castelo e minha mecânica
principal ser o xadrez, desde que o jogador entenda que vencer essas partidas é o objetivo
do jogo que me levará ao objetivo final da narrativa também. Uma forma prática e muito
utilizada de conectar esses pontos é fazer uso do plot para justificar a gameplay – e não
o contrário(!). O reino para onde a princesa foi levada pode ser num universo que é um
tabuleiro gigante de xadrez e a cada fase diferente ela está presa em uma das peças de
torre que NÓS SÓ LIBERAMOS AO GANHAR A PARTIDA! E com isso, a gameplay ganha
um sabor especial e a narrativa se torna recompensadora para o jogador.
São esses pequenos e poderosos links que fazem a narrativa funcionar melhor em um
jogo. Ah, se por um acaso você não acha que seja necessário ou possível fazer essa
ligação na sua gameplay sem fugir muito do que você quer, então repense a utilização de
uma narrativa no seu projeto. Apesar de ser um instrumento poderoso de retenção e

engajamento, um jogo com uma mecânica incrível é capaz de performar muito bem sozinho quando bem feito – já uma narrativa maravilhosa num jogo onde a gameplay deixa a desejar não se aguenta sozinha (se ela não foi feita com esse propósito) e isso tem que estar bem claro para os envolvidos desde o início.

 
Remember that, as a game designer, you are still making a game and not a story. In most cases, the story should not preclude gameplay. At the very least, you should be extremely careful when you are tempted to make a concession in gameplay for the sake of the story, or when you plan to overload the player with non-interactive story bits. – Ian Schreiber
 
É só lembrar que o que protagoniza um jogo sempre é a experiência pensada como um todo: mecânicas, história, sonorização e o que mais for. Você não precisa narrar em texto cada passo do jogador. Deixe que ele dê os passos através da gameplay! Trabalhe o in media res – vá direto ao ponto, parta mais pra ação. Com a gameplay e narrativa dividindo-se para contar a história, elas compartilharão não só o mesmo objetivo, mas uma antecipação por parte do seu jogador que é capaz de fazer a diferença em seu jogo.
 
That has a serious effect on the story’s pacing. Imagine if, during the middle of Star Wars, you had to sit through a half-hour sequence as Luke Skywalker explored the Death Star and engaged in random battles with stormtroopers. – David Gaider
 
TL;DR
  • A história e a gameplay do jogo devem contribuir com um mesmo objetivo.
  • A história e a gameplay idealmente poderiam possuir o mesmo conceito visual/mood.
  • É possível combinar qualquer história com qualquer mecânica, se elas forem conectadas por um objetivo em comum.
  • Se não parece que o jogo aceita muito bem essa conexão enredo e gameplay, repense o uso de narrativa no jogo.
  • Uma boa narrativa não segura o jogo sozinha. A gameplay é sempre prioridade.
  • A melhor história é aquela contada com a gameplay, que deixa o jogador dar os próprios passos pelo enredo.
  • O texto/cutscene deve ir mais direto ao ponto, enquanto a gameplay pode trabalhar o in-between.
 
Gostou? Na parte seguinte, vamos encerrar falando sobre como escrever para o seu público, um bom pacing e como testar sua narrativa!
 
                                            Essa matéria foi escrita por:
Izadora Lima

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