Pela primeira vez na vida eu sentei e li Nausicaä. É um mangá de 1983 feito pelo Hayao Miyazaki, que também dirigiu o filme, e conta a história de como a Nausicaä conseguiu parar uma guerra e alterar o destino do mundo. O mangá é em preto e branco com algumas ilustrações coloridas e sua produção começou junto com a do filme. O filme acaba antes que o mangá, que expande a história e os personagens.
Nausicaä é a princesa do Vale do Vento e ela consegue misteriosamente se comunicar com criaturas do Mar de Podridão, uma gigantesca floresta tóxica que avassala o continente. Ela é aliada de um país com um rei mesquinho e calculista, com 4 filhos horríveis, que está em guerra com o imperador arrogante de outro país, com um irmão mais novo horrível. No conflito também temos os moradores do Mar de Podridão, que se aliam ao Imperador, e um ou outro personagem que está fora da guerra e a favor do Mar.
A Nausicaä descobre que as plantas e fungos tóxicos do Mar de Podridão estão ali para purificar o solo e a atmosfera, e por isso acabam soltando um miasma venenoso no processo. E, no final, descobrimos que 1000 anos atrás engenheiros criaram essas criaturas para tal purificação, pois a poluição do solo e do ar e do mar estava tornando impossível a sobrevivência humana. O que os pesquisadores não pensaram é que levaria milênios para destilar a poluição e que nesse período a humanidade teria evoluído para conseguir resistir ao miasma. Então o “ar puro” não seria algo que eles necessariamente precisariam buscar.
Essa conclusão me é interessante e realista, e legal de ler hoje em dia. Todo mundo saindo de casa usando máscara, pois o ar contém componentes perigosos. Todo mundo preocupado com o clima e conflitos. Nausicaä se mostra até mais relevante hoje do que nos anos 80.
A personagem principal não passa por um arco de desenvolvimento em si. Ela é uma mulher sincera e correta, que sempre tenta achar a solução não violenta, mas entende que a violência às vezes é a única escolha realmente pacífica. E o que acontece com ela é que aos poucos ela vai desvendando a verdade do mundo e com isso vai encarando o papel dela diferente.
Os personagens secundários todos são em função da Nausicaä e da jornada dela, e isso tem a ver com a área que ela cria de empatia ao seu redor. E tudo bem, mas isso deixa os outros personagens meio rasos, mesmo que todos eles pareçam ter uma vida fora do que vemos no mangá, fora da bolha da Nausicaä.
Dito isso, parece ser um mangá realista, mas existe projeção astral, telepatia, telecinese, pessoas que se comunicam em várias línguas magicamente, profecias, pessoas imortais e mais um monte de coisas impossíveis. É importante ler a história tendo em vista que a mensagem é mais importante do que o que está acontecendo. Pelo menos foi a impressão que eu tive. A construção de mundo sem explicar muito o que está acontecendo é extremamente comum nas narrativas do Miyazaki, mas em Nausicaä você consegue compreender os limites de cada “mágica” então nenhuma delas parece vir como um Deus-Ex.
O cenário é a guerra são bem estabelecidos e quando líderes morrem fica bem claro que os sobreviventes precisam carregar os fardos de pós-guerra. Essa parte é bem escrita e me pergunto se o Miyazaki tem alguma experiência no assunto.
Sinceramente, eu não sei dizer se eu gostei. Eu costumo gostar de narrativas mais pessoais, com personagens buscando e crescendo. E eu até gostei da Nausicaä, ela busca conhecimento e aos poucos o papel dela como messias vai se expandindo, mas não pega no meu apelo emocional. Eu gostei de uma forma muito mais intelectual do que emocional. A mesma mensagem é passada melhor, e mais emocionantemente, em Mononoke Hime do que em Nausicaä. Mesmo sendo 7 volumes extremamente trabalhados com uma estética incrível.
Lendo Nausicaä finalmente, pude notar quem e como já fez referências à essa obra. As referências meméticas costumam ser ao mar de Podridão, imageticamente. Pois o que ele representa é essa floresta venenosa que se expande. Mas acabei encontrando referências que as pessoas fazem à construção de mundo. O famoso “essas incríveis tecnologias do passado, que hoje em dia mal sabemos usar” presentes, por exemplo, em Horizon Zero Dawn, NieR e Tengen Toppa Gurren-Lagann. Caçando Dragões tem uma estética visual, das roupas e das naves, parecida. E Dorohedoro tem um monte de referências, como as máscaras dos personagens, os fungos, as coisas caindo e quebrando, a dicotomia que a guerra trás de “nós é o outro”. Foi uma cacofonia de homenagens que eu percebi que existiam no trabalho da Q Hayashida. Outro mangá que eu me lembrei foi Fire Punch. Esse por conta de como um imortal é capaz de ver que os seres humanos repetem os mesmos erros sempre. E a Nausicaä responde a isso com: “Sim. Porém também repetimos os mesmos acertos.”
É uma resposta que eu achei genial. É difícil o discursinho do protagonista ter algum apelo de verdade, fora do contexto da narrativa. Mas esse eu comprei, porque eu amo essa leitura. Historiadores contam de novo e de novo as coisas que os seres humanos fazem e sempre fizeram, tornando-os humanos. Pichações de de “Marcus esteve aqui” nas paredes de Pompéia; Vikings escrevendo “aqui é bem alto” numa caverna muito alta; babilônios reclamando dos lingotes de cobre do caloteiro Ea-nasir; usarmos a palavra “boicote” até hoje por conta de um grego chato dando uma festa que ninguém queria ir… Então essa conclusão da Nausicaä me soa verdadeira. O que é importante num mangá sobre devastação ambiental.
No final das contas eu estou feliz de ter lido. Ele está quietinho há anos na minha estante e hoje foi o dia de ler. Espero que vocês também tenham curiosidade de ver a história da Nausicaä.
Obrigado à todos
E até…
H.
Hita Aisaka